Como é pilotar a aventureira de luxo da Ducati que tem até 'aquecedor de buzanfa'
Andamos na Multistrada V4 S, de R$ 150 mil, com motor V4 de 170 cavalos e cheia de tecnologia, como radar
Há anos a indústria tenta encontrar a perfeita combinação entre on e off-road. Tanto nas motos, quanto nos carros, essa busca tem explicações na versatilidade de uso, no conforto das suspensões, sem perder a esportividade. Entre os carros surgiram os SUVs (esportivos utilitários), e entre as motos vieram as big trails. O maior desafio é fazer essa divisão entre asfalto e terra ser desfrutável sem comprometer o uso em nenhum terreno. Sem querer dar spoiler, acho que a Ducati conseguiu.
Motor de quatro cilindros é uma maravilha. Motor em V é uma delícia de pilotar. Motor de quatro cilindros em V é uma maravilha deliciosa. Ou uma delícia maravilhosa. Só de ligar já dá um negócio no peito de quem adora motos. Mas, antes de engatar a primeira das seis marchas, me deixe descrever um pouco dessa italiana: a Multistrada V4 S.
Ao olhar ela parada, parece grande. Não tanto quando uma BMW R 1250 GS, mas mais do que a Honda Africa Twin 1100. Mas essa dimensão só assusta quem nunca pilotou big trails. Na verdade qualquer moto que parece grande se torna “pilotável” quando se coloca em movimento. E com essa big trail não é diferente, mesmo com os quase 250 kg com o tanque de 22 litros totalmente cheio.
Felizmente, e a exemplo da maioria das motos atuais de grande tecnologia, esta Ducati conta com módulos de injeção que facilitam a pilotagem no uso urbano, estrada ou na terra. Como sempre, aconselho a usar esses recursos porque além da distribuição de força ser mais dócil, ajuda muito e economizar gasolina.
A posição de pilotagem não poderia ser mais confortável e prazerosa. A altura do banco ao solo é ajustável de 840 a 860mm, mas pode-se pedir um banco rebaixado opcional que a deixa com 810 mm ou mesmo um banco elevado que chega a gigantescos 875mm.
A moto avaliada estava com 860 mm, e mesmo para pilotos prejudicados verticalmente como eu (1,68 m), é fácil de manobrar em baixa velocidade. Para 2022, a Ducati lançou na Itália uma versão “lower” mais baixa (790mm) e com um kit que a deixa tão baixa quanto uma moto “normal”. Não existe previsão de vir para o Brasil.
Aquele triângulo imaginário formado pela pedaleira, banco e guidão é sob medida para quem tem entre 1,70 m e 1,75 m. Pernas suavemente dobradas, braços bem abertos e banco generoso para piloto e garupa. Neste banco uma frescura bem agradável: aquecedor de “buzanfa”. O engraçadinho que testou a moto antes de mim deixou ligado e só percebi quando já estava suando mais que tampa de marmita.
Logo nos primeiros quilômetros – em meio ao trânsito pesado de São Paulo – já dá pra perceber que é uma moto que até se desenvolve bem no meio da muvuca de carros. Para os paulistanos ela tem um item – comum em carros, mas raro em motos – que ajuda bastante: o sensor de ponto cego nos espelhos retrovisores. Com quase 400 mil motoboys zanzando por cada metro quadrado da cidade, as luzes de advertência dos espelhos ficam acesas praticamente o tempo todo.
Outra boa herança dos carros é o radar de presença, também conhecido como “acorda, maluco!”. Tratam-se de sensores (nada discretos) colocados na frente e atrás da moto. O de trás avisa sobre os veículos que se aproximam (é o que mais trabalha) e o dianteiro não deixa o motociclista de aproximar demais do veículo da frente. Mas ele só é habilitado quando se usa o sistema de controle de cruzeiro, tradução meio tosca de “cruise control”. E acredite: funciona!
Vale a pena explicar um pouco mais sobre os tais controles de cruzeiro. Antes eram chamados de “piloto automático”, mas essa expressão foi banida porque algumas pessoas entendiam que podiam ligar o dispositivo e dormir. Na real, é um sistema que mantém a velocidade escolhida pelo piloto, mesmo em subidas e descidas. A principal utilidade deste sistema é permitir que o piloto relaxe a mão direita em alguns momentos. Isso alivia muito o cansaço e aumenta consideravelmente o conforto e a capacidade de ficar na estrada até esgotar os 22 litros de gasolina do tanque.
Vambora
Quem gosta de detalhamentos técnicos minuciosos recomendo entrar no site da Ducati que tem muita coisa legal. Vamos tratar da parte divertida: que é descrever essa belezura nas três condições de uso: urbano, estrada e estrada de terra, afinal ela é big e é trail.
No uso urbano a única coisa que realmente atrapalha um pouco é a largura do guidão, mas não dá pra ser diferente. É possível rodar no meio do caos paulistano sem grandes esforços, mesmo com garupa. O sensor de ponto cego funciona mesmo e ajuda bastante, deveria ser item obrigatório. Mas usar uma moto de 170 cavalos só na cidade é como comprar um cavalo de corrida para puxar carroça.
O grande prazer desta Ducati é realmente pegar estrada. E comecei pela enorme e larga rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo para testar a aerodinâmica, uma parte muito bem estudada nesta Multistrada. A começar pela bolha regulável.
Na cidade deve-se deixá-la abaixada, claro. Mas na estrada acima de 100 km/h é melhor levantar (dá pra fazer com apenas uma mão) para o vento passar por cima da cabeça. Aqui acho que o grande – e talvez único – pênalti dessa moto: a bolha é preta! Isso mesmo, o para-brisa não é transparente!!! Não encontrei uma explicação para isso!
A aerodinâmica foi uma parte muito bem trabalhada, porque a velocidade máxima está “al di lá” de 250 km/h. Como o piloto fica posicionado muito em pé e a frente da moto é elevada, as curvas ao lado das carenagens atuam de verdade para manter o conjunto equilibrado mesmo em altíssima velocidade. Além disso, outros pequenos recortes funcionam para direcionar o ar quente do motor para longe das pernas do piloto. Ainda assim esquenta bastante! É o preço a pagar por tanta potência, isso gera calor mesmo!
Outro item requintado é o painel com uma tela de cinco polegadas totalmente cheio de informações e opções de displays. Nos punhos encontram-se os botões para selecionar a alterar vários parâmetros. Além disso pode-se parelhar o telefone celular para selecionar música, usar aplicativos ou GPS. E no tanque de gasolina tem um pequeno porta-luvas para guardar documentos ou – precisei muito – a grana do pedágio.
Motores de quatro cilindros são muito lisos, de baixíssima vibração. Neste compacto e leve V4, a Ducati abriu mão do mundialmente famoso comando de válvulas desmodrômico e optou pelo comando duplo acionado por correia. Justamente porque queria um motor liso e silencioso. O cabeçote Desmo é muito eficiente, mas faz barulho de bolinhas de gude no liquidificador. Detalhe para o escapamento Akrapovic original, nem pense em substituir porque o ronco é perfeito
Sempre busco rodar em última marcha a 100 e a 120 km/h para saber a rotação. Essa “mania” serve para identificar se um motor roda “baixo”, ou seja, em rotações menores, ou roda “alto”, esgoelando, gritando, como um gato preso no porta-malas de um Chevette. Curiosamente as faixas de rotação são as mesmas da Honda CB 1000R: a 100 km/h o conta-giros marca 4.100 RPM e a 120 km/h = 5.000 RPM. Como a potência está a 10.500 RPM, pode-se dizer que o motor é suave, mas pronto pra botar o Jabaquara em campo se precisar.
Para rodar na estrada o modo ideal é o Touring, obviamente. O motor fica mais dócil, econômico e com respostas muito fortes. Com o torque de 12,7 Kgf.m a 8.750 RPM, a faixa útil de rotação é enorme, o que se traduz em um motor tão “elástico” que se pode ignorar o câmbio de seis marchas. Mas é uma pena, porque esta Ducati vem equipada com câmbio quick-shift, que dispensa a embreagem nas trocas de marcha, tanto ascendente quando descendente.
Nas competições esse sistema é justificado porque reduz o tempo das trocas de marchas. Mas nas ruas ninguém está competindo, então qual a função? Depois de engatada a primeira marcha o piloto pode usar todos os cinco dedos da mão esquerda para se manter grudado na manopla. E acredite que vai precisar porque o empurrão é tão violento que dá medo de soltar os dedos para acionar a manete de embreagem. É um alívio pode contar com todos os 10 dedos pra se agarrar.
Então chega a primeira parte divertida do roteiro: serra! Cheia de curvas! Dizem – nunca contei – que a subida da serra de Amparo para Serra Negra (SP) tem 222 curvas. Fiz todas elas sem dó. Esqueça bigtrails pesadas, altas e ruins de curva. Esta Multistrada foi feita para inclinar até onde o juízo permitir, porque os pneus Pirelli Scorpion Trail têm limite muito acima do que somos capazes de chegar.
Obviamente que assim que vi a primeira curva passei para o modo Sport (pode-se mudar com a moto em movimento, mas com o acelerador fechado). Nesta configuração muda o setup da suspensão eletrônica; o motor perde menos giro nas trocas de marchas; os controles de tração e empinada ficam mais permissivos (leia-se assustadores) e o ABS Cornering permite algumas brincadeiras insensatas como forçar a derrapagem de traseira. Tire as crianças da sala e não tente fazer isso em casa!
Basicamente é uma moto esportiva com mais curso de suspensão e que se pilota de peito aberto. Os freios são Brembo herdados da versão esportiva Panigale. São durões quando precisa e bons mocinhos quando convém. Susto zero e com a tecnologia “cornering”, que deixa frear lá dentro da curva sem a moto dar o “stand up” e seguir reto na curva.
Já tive a chance de pilotar a Multistrada V2 em autódromo de verdade e posso garantir que essa V4S melhorou o que já era muito bom.
Terra à vista
Confesso que pensei muito se deveria, ou não, colocar uma moto de mais de 150.000 dinheiros numa aventura insana por estradas de terra. Mas eu estava em Socorro (SP), já tinha feito a boa ação de visitar o Museu Duas Rodas (vá!) e tinha de subir até a Pedra Bela Vista curtir o pôr do sol, almoçar de graça no ótimo restaurante que tem lá em cima e avaliar se essa coisa vermelha, alta, sexy e cara realmente pode ser torturada numa sequência de curvas na terra.
Nestas horas sempre prometo pra mim mesmo me controlar, não forçar a barra, sem correr riscos e blablabla... Mas tem um diabinho que fica no meu ouvido “vai, só um salto, só uma derrapada, testa o ABS”, e coisa pior. Ele venceu!
Com o módulo na posição Enduro, sem mexer na calibragem dos pneus, lá fui eu desafiar a gravidade e minha conta bancária.
A estrada é velha conhecida porque por mais de 10 anos pratiquei escalada na região. Não faz muita diferença, mas ajudou a amenizar minha consciência. A primeira descoberta é que o controle de tração atua bem discretamente e fica mais a cargo do punho direito do piloto. O freio ABS desabilita a roda traseira e deixa escorregar livremente. Mas o melhor de tudo é a suspensão eletrônica semi-ativa. Semi porque ela permite regulagens, mas ativa porque a central eletrônica identifica o tipo de terreno a faz alguns pré-ajustes. Posso garantir com firmeza que funciona.
No modo Enduro, o motor fica limitado a 115 CV (ufa!) o que é muito mais do que um ser humano normal precisa. Um dos itens que gostei logo de cara foram as rodas raiadas (com pneus tubeless), enquanto na Europa ela sai com rodas de liga. A enorme vantagem da roda raiada é que suaviza as pancadas nas pedras e buracos, aliviando parte do estresse dos pneus. Os raios “trabalham” como se fossem pequenos amortecedores de impactos.
No primeiro momento desdenhei do aro dianteiro de 19 polegadas.Mas a ideia era produzir uma moto efetivamente on e off-road e uma roda de 21 polegadas tiraria parte do prazer no asfalto.
Surpreendente a eficiência dos pneus Scorpion Trail. O desenho dos sulcos sugere um uso muito mais on. Só esqueceram de me avisar, porque pilotei na terra como se estivesse de pneus enduro e deu tudo certo. Não tive a chance (ainda bem) de pegar lama, o que aí sim poderia comprometer a eficiência. Não é fácil manobrar os quase 250 kg (abastecida) em baixa velocidade, mas vamos combinar que não é uma moto feita para neófitos.
O retorno para casa foi feito à noite e tive chance de avaliar o ótimo farol com uma outra sacada herdada dos carros: nas curvas aumenta o facho do farol para o lado que inclina. As setas se desligam sozinhas (por acelerômetro) e as manoplas são aquecidas. Ou seja, se colocar mais duas rodas vira um carro!
Eficiente na terra, prazerosa nas curvas, confortável na estrada e desenrolada na cidade. Este é o resumo da Ducati Multistrada 1260 V4S, uma moto 4 em 1 que permite tanto viajar até o fim do mundo sem se preocupar com o tipo de piso, acompanhar os amigos de motos esportivas nos track-days e empurrar os motoboys em São Paulo.
FICHA TÉCNICA - Ducati Multistrada V4 S |
PREÇO | R$ 144.990 |
MOTOR | V4 a 90º, 4 válvulas por cilindro, 1.158 cc |
ALIMENTAÇÃO | Injeção eletrônica |
COMBUSTÍVEL | Gasolina |
POTÊNCIA | 170 cavalos a 10.500 rpm |
TORQUE | 12,7 kgfm a 8.750 rpm |
CONSUMO | Não divulgado |
DIÂMETRO x CURSO | 83 mm x 53.5 mm |
CÂMBIO | 6 marchas |
CHASSI | Quadro monocoque de alumínio |
RODAS | Raiadas, de alumínio 19” na dianteira e 17” na traseira |
ENTRE-EIXOS | 1.567 mm |
ALTURA DO ASSENTO | Ajustável de 840 a 860 mm |
PESO | 218 kg (seco) / 234 kg (ordem de marcha) |
TANQUE | 22 litros |
FREIOS | ABS cornering |
FREIO DIANTEIRO | Disco duplo |
FREIO TRASEIRO | Disco simples |
PNEU DIANTEIRO | 120/70-19 D |
PNEU TRASEIRO | 170/60-17 T |
SUSPENSÃO DIANTEIRA | Garfo invertido regulável, curso 170 mm |
SUSPENSÃO TRASEIRA | Monoamortecedor regulável na pré-carga da mola, curso de 180mm. Balança traseira de alumínio |
CORES | 15,38 km/l (dados na Europa) |