Como nasce um pneu?
Saiba como são desenvolvidos os mais modernos pneus para motos
Cada vez que um motociclista faz uma curva inclinado, curtindo a emoção de deitar a moto, ou freia para escapar de uma situação de emergência, ou ainda consegue viajar debaixo de um tremendo temporal, deveria agradecer aos fabricantes de pneus. Mais especificamente, a toda uma equipe que trabalha para que os pneus garantam a segurança do motociclista.
Entre as dúvidas mais frequentes dos novos motociclistas, os pneus estão no topo da lista. Das mais variadas, que vão desde a escolha até a forma de conservação. O que pouca gente sabe, ou tem curiosidade, é como nasce um pneu? O que vem primeiro? A necessidade de um fabricante de moto, ou o interesse da fábrica de pneus em oferecer uma nova opção? Não vou dar spoiler, você vai ter de ler até o fim!
Minha curiosidade me fez pedir ajuda à Pirelli, parceira de longa data, para responder a essa pergunta: quem nasce primeiro, a moto ou o pneu?
Foi uma ótima oportunidade para pegar minha moto e viajar até Elias Fausto, cidadezinha simpática no interior de São Paulo onde está instalado o Campo de Provas da Pirelli batizado de Circuito Panamericano. É lá que os pneus passam por todo tipo de teste antes de serem liberados para consumo. Foi lá que entrevistei o piloto de teste de pneu, Eduardo Zampieri, mais conhecido nos meios motociclísticos como “Minhoca”.
Tudo começa com uma solicitação de um fabricante de moto. A fábrica vai lançar uma moto nova e precisa de pneus. Neste caso é tudo novidade. O fabricante da moto não dá muitos detalhes do novo produto porque isso é um segredo guardado a sete chaves. Também porque o desenvolvimento de uma moto 100% nova pode levar anos. A fábrica da moto começa entregando alguns parâmetros do tipo: é uma moto de uso urbano, pesa 160 kg, motor de 250cc, tem 25 CV, ângulo máximo de inclinação em curva, tipo de freios etc e mais etc e tal.
Aí o fabricante de pneu acessa seu menu e mostra quais pneus já tem em produção para este tipo de moto. Se o fabricante da moto aceitar algum, não significa que irá simplesmente instalar nas rodas e pronto. Isso até acontece com algumas marcas de baixa produção, mas normalmente o fabricante da moto começa a trabalhar junto com a equipe da Pirelli para definir como será o pneu específico para aquela moto.
Um dia o fabricante da moto aparece já com o primeiro protótipo para começar os testes práticos. Alguns testes já foram feitos em simuladores, mas nada substitui o piloto de teste feito de carne e osso.
Uma coisa que pouca gente sabe é que o fabricante da moto também tem um campo de provas e eles também testam os pneus. São capazes de criar parâmetros que nenhum fabricante de pneus imaginou. E começa o desenvolvimento.
Muda isso, aquilo e aquilo também
A partir de um modelo de pneu que já existe, o fabricante da moto começa a fazer a homologação. Define parâmetros como ruído, rolagem, conforto, handling (maneabilidade), rendimento quilométrico e mais uma dúzia de itens.
Estes parâmetros são enviados para a engenharia de desenvolvimento de produtos da Pirelli que começa a refazer o pneu praticamente do zero. Aquela borracha que adoramos gastar é como uma massa de bolo. Tudo será feito a partir do que foi captado nos campos de teste. Até o desenho, que originalmente está lá prontinho, pode mudar. Para isso, existe um profissional que é um verdadeiro artista. Ele pega aquela massa redonda de borracha bruta e faz os desenhos com uma goiva (sgorbia, em italiano), de forma simétrica e precisa... a mão!
Esse primeiro desenho servirá para definir não apenas o aspecto visual, que importa – e muito – mas também determina parâmetros como a “impressão digital” que fica no solo (em italiano, impronta), a capacidade de dispersão de água, ruído, frenagem, etc (são mais de 15 parâmetros!).
Definido o desenho é hora de avaliar a massa do bolo, a mistureba química e natural que resulta na borracha. Em italiano se diz mescola. Essa avaliação tem duas variantes: o que acontece dentro do pneu e como ele se comporta em atrito com o asfalto. Então, o pneu tem que ser interpretado por dentro e por fora!
Ou podemos chamar de dois tipos de grip: o grip químico, resultado da mescola usada para produzir o protótipo; e o grip mecânico, que é a forma do pneu conversar com o asfalto. Tente se imaginar um piloto de teste, num dia que a temperatura do ar está 38ºC, o asfalto está 60ºC e você precisa fazer uma bateria de testes para levantar o máximo de informações. Fui ver isso de perto.
À prova de tudo!
O Campo de Provas da Pirelli fica dentro de um terreno de 1.650.000 m², que já daria para fazer outra cidade! Fui lá acompanhar como é um dia na vida dos pilotos de teste de pneus. Atividade que exerci apenas como convidado em várias ocasiões aqui no Brasil e no exterior.
O piloto de teste atende três tipos diferentes de solicitações:
1) Testar pneus novos para a indústria de motos – como o exemplo que dei acima
2) Testar pneus desenvolvidos pela própria Pirelli para abastecer o mercado de reposição.
3) Testar pneu quando muda qualquer coisa no processo de industrialização. E é qualquer coisa mesmo, até se pneu mudou a forma de ser transportado!
Vou continuar no item 1: desenvolver pneu para uma fábrica de motos. Depois de todo desenvolvimento, testes e homologações o pneu desenvolvido pela Pirelli – e exaustivamente testado pelo Minhoca – vai para a fábrica que reúne seus pilotos e... refaz todos os testes!!!
Aí, os minhocas da fábrica de moto detectaram que o pneu dianteiro, a 120 km/h, no piso seco, de asfalto, em inclinação de 27,5º em relação ao plano vertical, emite 0,02 decibéis a mais do que foi solicitado. Volta tudo para a bancada de projeto, mexe aqui, ali, muda a mescola, altera um milímetro a largura dos sulcos (encavos, em italiano) e lá vai o nosso Minhoca para a pista de teste de novo, com a moto cheia de aparelhos. Isso pode levar até dois longos e exaustivos anos.
Quando finalmente o pneu recebe a homologação do fabricante da moto, ele passa a designar EO, Equipamento Original. É com este pneu que a moto sai da linha de montagem e é ESTE pneu que a fábrica considera como equipamento original de série. Ele só é vendido nas concessionárias da marca da moto e custa mais caro do que o pneu comprado na esquina de casa. Porque tem escala menor e o concessionário da moto precisa ganhar a grana dele também!
Mas e quando esse pneu original gastar? Nada impede de comprar (e montar) na concessionária, mas saiba que é mais caro e não adianta fazer “protesto” no YouTube! Mas tem o produto de reposição. Lembra lá no começo dessa novela, quando comentei que a fábrica da moto escolhe o pneu no menu que a Pirelli já tem em produção? Então, esse modelo de pneu já existe, mesma medida, modelo, desenho, cheiro e cor. Mas ele será ainda mais desenvolvido para se aproximar – nunca igual – ao produto homologado pelo fabricante da moto. ESTE pneu é vendido no mercado de reposição.
A segunda demanda do piloto de teste é para desenvolver pneus para atender o mercado de reposição com variedades. Por exemplo: uma moto de 150cc sai de fábrica com um pneu Pirelli Triktrake ZYX, que foi homologado pelo fabricante por atender aquilo que o fabricante da moto acha que é melhor para o seu consumidor. Mas aí a Pirelli desenvolve um produto chamado TikTok WKX que tem mais rendimento quilométrico, porém é mais barulhento. Quem roda muito com a moto está pouco se lixando se o pneu emite 0,5 dB a mais de ruído.
Portanto, nem sempre o que é relevante para o fabricante da moto é importante para um determinado tipo de consumidor. Daí o lançamento de pneus nas mesmas medidas dos originais, porém com alguns parâmetros diferentes.
Neste caso, o sofrimento do piloto de teste é um pouquinho menor, porque ele se reporta somente à sua engenharia de desenvolvimento. O fabricante da moto não dá pitaco.
Agora, tem a terceira demanda de teste: mudanças na linha de montagem. Na verdade, o dia a dia de um piloto de teste é uma exaustiva rotina de repetições de procedimentos. E você aí achando que era cheio de glamour, motos de 200 cavalos, ar-condicionado e marmitex do Fasano!
Pense que os pneus são feitos com vários compostos, além da borracha, como fibras sintéticas, metais, tecidos, metade da tabela periódica etc. Então mudou o fornecedor de UMA fibra sintética. Lá vai o Minhoca testar os pneus tudo de novo. Mas que testes são estes? Agora entra a parte divertida da atividade.
Não consegui acompanhar TODOS os testes – inclusive por questão de sigilo – mas vi alguns. No Campo de Provas, além do adorável circuito de 3.400 metros que lembra o circuito de Estoril (Portugal) que recebe o nome carinhoso de dry handling (maneabilidade no seco), tem as pistas:
Wet handling (maneabilidade no molhado), com 2.000 metros e esguichos que mantém a pista molhada na quantidade de água desejada.
Steering pad, uma espécie de redondódromo para testar a aceleração lateral e o famigerado detalonamento, quando o pneu do carro sai do aro.
Comfort, onde se mede ruído, vibração e aspereza.
Pista de testes especiais, são condições extremas como frenagem em curva, aquaplanagem, teste de impronta, a “pegada” do pneu no solo.
Pista de ruído externo, o barulho que o pneu emite para quem está na rua.
Circuito off-road, como o próprio nome diz, uma maravilhosa combinação de torturas na terra e lama.
A rotina
Finalmente chegou um lote de pneus para testar. São modelos que estão em produção, mas que tiveram alguma mudança interna que precisa ser avaliada. O jogo é montado na moto, e lá vai o Eduardo Zampieri para a primeira bateria de avaliação. E eu vou atrás, em outra moto acompanhando tudo que ele faz. Eu estava em uma moto de 160cc que estava avaliando um novo pneu. Mas ele não disse o que tinha de diferente, só disse que não eram pneus de série.
Primeiro ele dá uma passadinha na pista de tortura – com calçamento de pedra – para “acordar” os pneus. Depois entra no circuito para as primeiras voltas. Faz uns zigue-zagues malucos, balança a moto pra todo lado, freia, deita nas curvas mais que Valentino Rossi e adivinha quem estava atrás imitando tudo?
Eu até captei vários detalhes dos pneus que eu estava usando, mas quem estava preocupado com pneus? Eu queria só andar naquela pista o dia todo. Que asfalto, que curvas, que perfeição de traçado, e esse sujeito que ganha para ficar andando nela todo dia!!!
Quando voltamos para o box, o Minhoca foi para a mesa de trabalho, abriu o notebook e começou a completar uma dúzia de informações. Ele dá notas de 0 a 5 para cada item dessa lista, chamada de pagella (boletim, em italiano). Tem de ser imediato, enquanto as informações estão frescas na cabeça. Nas voltas que demos na pista, ele levantou uma montanha de dados sem usar nenhum aparelho! E eu já tinha esquecido até o que tinha ido fazer naquele lugar!
Enquanto ele completa a pagella, um santo mecânico já está montando um novo par de pneus. Depois, o Eduardo sai com outro par de pneus e refaz tudo exatamente como na primeira vez. Volta para o notebook, completa a pagella, comparando os dois pneus e classifica: isso melhorou, isso piorou, isso continuou igual.
Dependendo do caso ele leva para a pista de piso molhado, o que naquele dia de calor saariano foi uma benção. As medições de ruído e conforto são feitas com aparelhos montados nas motos.
Bom, eu resumi MUITO, porque isso leva um dia inteiro de testes. E você aí achando que pneu “balatinho” é a mesma coisa!
Antes de ir embora ele perguntou: e aí, o que achou desses pneus que você andou?
Putz, eu esqueci que também estava testando pneus! Tentei lembrar de alguma sensação que não fosse de euforia e arrisquei:
- Pow, a única coisa que percebi é que os pneus dianteiro e traseiro não falam a mesma língua, parecem dois produtos diferentes!
O ser anelídeo deu uma gargalhada e confessou: e são diferentes mesmo, estamos testando só o pneu dianteiro!
Assim, depois de brincar de piloto de teste, me despedi deste lugar que parece uma Disneylândia para quem gosta de moto e de pista. Mas com a certeza de que em cada frenagem de emergência, curva inclinadão ou tempestade que você enfrenta e sai ileso tem um pouco do trabalho do Eduardo Zampieri e toda uma equipe de desenvolvimento. O apelido dele é Minhoca, mas o cara é cobra!